11 Janeiro 2022

Para saber mais sobre os aspectos em discussão acerca da Rastreabilidade

Texto escrito por Thaís Aguiar

Considerações iniciais

Que o volume de informações na internet é massivo, não restam dúvidas: a todo momento, recebemos e temos à disposição uma infinidade de conteúdos, dos mais variados tipos. Além de interações positivas na rede e materiais construtivos, encontram-se também os aspectos problemáticos, como conteúdos dotados de desinformação – que têm se revelado um problema ainda mais sensível durante a pandemia, conforme relatório da Organização Pan-Americana de Saúde – ou mesmo de teor criminoso. Diante disso, identificar de onde vem determinado conteúdo e quem o produziu é uma solução frequentemente apontada por autoridades para combater problemas na rede e identificar responsáveis: e é nesse contexto que começamos a falar de rastreabilidade.

Para início de conversa, o que seria a rastreabilidade? No âmbito das comunicações na rede, estamos falando da capacidade de rastrear a origem de um determinado conteúdo ou mensagem. Uma série de workshops sobre "rastreabilidade e cibersegurança" realizada na Índia no final de 2020 apontou três questões principais: a viabilidade de rastreabilidade em comunicações criptografadas de ponta-a-ponta; os métodos disponíveis para permitir a rastreabilidade; e as ramificações de cada um.

As técnicas propostas para a rastreabilidade no contexto de mensageria privada são o uso de assinaturas digitais e o uso de metadados. No presente texto, utilizaremos um caso sobre o uso de metadados que ganhou evidência no Brasil como ponto de partida para introduzir a discussão.


Rastreabilidade no Brasil: o debate do “PL das Fake News” e o eco das Guerras Criptográficas

No Brasil, o tema da rastreabilidade ganhou evidência quando o Congresso passou a discutir o Projeto de Lei nº 2630/2020, ou “PL das Fake News”. Considerando o crescente problema da desinformação e que o WhatsApp é a principal fonte de informação de brasileiros, a proposta trouxe em seu artigo 10 a previsão de que serviços de mensageria privada fiquem obrigados a armazenar “registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens.” Em outras palavras, propõe-se a rastreabilidade massiva das comunicações por essas plataformas.

O artigo foi alvo de intensa discussão. Por um lado, houve adeptos da medida: como visto no 7º Ciclo de Debates da Câmara dos Deputados sobre o PL, a análise que considera a rastreabilidade uma solução proporcional parte de uma diferenciação conceitual entre dimensões pública e privada de comunicações por mensagem e, assim, considera que está afastado o risco de perfilamento individual.

Todavia, as críticas ao projeto foram mais frequentes e trouxeram uma série de razões. Ocorre que, para as plataformas tornarem as mensagens rastreáveis, a proposta exige, direta ou indiretamente, a flexibilização da criptografia de ponta-a-ponta. A segurança e a privacidade das comunicações ficam mais frágeis quando se deixa de garantir que a mensagem esteja acessível apenas às partes envolvidas. Isso explica a intensa reação ao PL 2630: como exemplo, a Coalizão Direitos na Rede preparou um artigo contra a rastreabilidade no projeto, ao passo que a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e o IP.rec - Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife elaboraram notas técnicas profundas sobre os riscos associados.

Dentre os problemas da rastreabilidade, pode-se apontar que a retenção preventiva e indiscriminada de metadados: coloca toda a população como suspeita, afrontando a presunção de inocência; traz riscos de perfilização social e vigilância massiva, ameaçando também a liberdade de expressão;  reduz a segurança digital e a privacidade; e não gera eficácia para fins de persecução criminal, uma vez que a atribuição digital não é absoluta e é inviável seguir a cadeia de metadados até a origem do conteúdo. 

Todas essas desvantagens encontram-se presentes no PL 2630 – o qual, embora seja um caso marcante no cenário brasileiro, traz uma narrativa que não é nova, nem exclusiva do país. Em todo o mundo, é possível encontrar casos de resistência de autoridades à criptografia nas comunicações digitais por supostamente trazer dificuldades às investigações criminais, o que se nota na narrativa do going dark ("ficar no escuro"), segundo a qual haveria uma suposta redução de dados disponíveis para as forças de segurança. Aliás, pesquisas sobre o debate jurídico da criptografia como o CryptoMap da Fundação Getúlio Vargas, que mapeia as iniciativas regulatórias no mundo, e o relatório do IP.rec sobre propostas no legislativo nacional demonstram que a resistência desde as Crypto Wars ("Guerras Criptográficas") ecoa até hoje. A esse respeito, a Internet Society reúne uma série de materiais sobre a importância da criptografia e suas implicações; e a Coalizão Direitos na Rede realiza anualmente uma campanha de conscientização, a #CriptoAgosto, para relembrar o valor da criptografia forte nas comunicações e interações digitais.

 Além da importância da criptografia, o tema da rastreabilidade também remonta à relevância de proteger os metadados. Esses "dados sobre dados", como podem ser compreendidos, por vezes são vistos como um recurso para que não haja a intrusão direta aos dados pessoais - quando é feita a diferenciação. Entretanto, é importante lembrar que os metadados estão tão relacionados a direitos e garantias fundamentais quanto os demais dados pessoais e, assim, merecem igual proteção. Esses são reconhecimentos que decorrem não apenas de análises da legislação específica – no caso brasileiro, da Lei Geral de Proteção de Dados e do Marco Civil da Internet – como também de decisões judiciais – como, por exemplo, na decisão de dezembro de 2013 do Tribunal de Justiça da União Europeia (Case C‑293/12 e Case C‑594/12) sobre proporcionalidade de medidas de retenção de metadados, um importante precedente para reforçar a importância de se protegerem metadados, e que reacendeu esse debate.  

Mais informações


A pauta de rastreabilidade encontra-se relacionada a uma série de temas, perpassando por muitos aspectos políticos, jurídicos e técnicos. Se podemos começar por discutir questões sobre repressão de condutas ilícitas e desinformação na rede, também é possível abordar direitos fundamentais relacionados e a responsabilidade de intermediários, abordada por Luiza Brandão e André Fernandes. Esta série produzida pelo Grupo de Trabalho em Responsabilidade de Intermediários da ISOC Brasil  seguirá com futuras análises de outros pontos igualmente complexos.