Declaração sobre riscos das propostas para conter a desinformação em discussão no congresso nacional
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São Paulo, 9 de junho de 2020.
DECLARAÇÃO
RISCOS DAS PROPOSTAS PARA CONTER A DESINFORMAÇÃO EM DISCUSSÃO NO CONGRESSO NACIONAL
O Capítulo brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) vem a público demonstrar enorme preocupação com o tratamento apressado e com pouco espaço para o diálogo público dado pelo Congresso Nacional ao tema do combate à desinformação no Brasil. Por entender que a questão pode ter implicações negativas severas para o funcionamento e o uso da Internet em uma perspectiva ampla no país, os membros da ISOC Brasil vêm a público trazer as questões abaixo à atenção dos parlamentares envolvidos no processo e do público em geral.
A maior parte desta Declaração aborda proposições contidas nos Projetos de Lei n° 2.630/2020 do Senado Federal e n° 2.927/2020 da Câmara dos Deputados. Ambos têm teor idêntico e propõem uma "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet". No entanto, desde a proposição respectiva em cada casa, várias propostas complementares e/ou alternativas foram divulgadas ao público (substitutivos, propostas de emendas globais e emendas pontuais) sem que, até a data da publicação desta Declaração, houvesse uma versão estável do texto para discussão pública. Por esse motivo, optou-se, nesta Declaração, por tratar de aspectos basilares que são cruciais à segurança, estabilidade e confiança dos usuários da Internet pela ótica do Capítulo Brasileiro da Internet Society.
1. A Internet é (e deve seguir sendo) uma rede aberta e de alcance global, que permite o desenvolvimento de aplicações e serviços variados, dando apoio à inovação, à criatividade e, principalmente, ao pleno desenvolvimento socioeconômico e humano. Os princípios que nortearam o desenvolvimento de um Marco Civil para a Internet no Brasil e foram finalmente incorporados no corpo da lei hoje vigente devem ser integral e inequivocamente observados no tratamento das interfaces existentes entre o fenômeno da desinformação e o funcionamento de determinados serviços e aplicações que se valem da Internet para sua operação.
2. Deve-se recordar que, nesse sentido, a expressão "aplicações de Internet" refere-se a uma ampla gama de serviços distintos. Equacionar o termo "Internet" e a expressão "aplicações de Internet" a certa aplicação ou serviço em particular é um atentado à diversidade e à pluralidade existente em uma rede de alcance global, que - em termos conceituais e práticos - deve permitir o acesso de qualquer pessoa, em qualquer lugar, a todo e qualquer conteúdo, serviço e/ou aplicação nela disponível e por meio dela acessível. Políticas públicas e marcos regulatórios atinentes à Internet não devem ser construídos a partir da lógica e das condições de serviços ou aplicações específicas, sob pena (a) de tornarem-se obsoletos muito rapidamente em virtude do rápido avanço da tecnologia e dos modelos de negócio e (b) de acabarem tendo seu escopo de incidência injustificadamente aplicado a aplicações ou serviços distintos do originalmente previsto, algo que gera insegurança jurídica em múltiplas dimensões do ecossistema digital.
3. Porque a Internet tem alcance global, nenhuma intervenção legislativa ou regulatória no território nacional deveria gerar óbices injustificados ao uso de serviços e aplicações disponíveis globalmente na Internet para usuários individuais e institucionais (no setor público e privado) no país. Da mesma forma, a exigência de adequações burocráticas e administrativas a provedores sediados no exterior não pode resultar, pelo seu excesso, que o país se feche ao gozo de serviços tecnicamente inovadores, economicamente atrativos e úteis ao público brasileiro, sob pena de atrasar o avanço da transformação digital do país (medida essencial para o alcance das Metas de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU). Seria absolutamente contraproducente que o país fosse responsável por medidas que levam à "fragmentação da Internet global" e à criação de um ecossistema digital alinhado com fronteiras territoriais físicas (a partir, por exemplo, de bloqueios de aplicativos ocorridos no país no passado), o que é completamente inconsistente com a noção de uma Internet aberta e cujos benefícios se estendem globalmente.
4. Revelam-se preocupantes algumas propostas recentemente apresentadas perante o Congresso, em particular o PL 2630/2020 tal como inicialmente proposto, a respeito da "rastreabilidade das comunicações privadas" em aplicativos de mensageria instantânea. A rastreabilidade, nos termos propostos por este PL, prevê a geração e o armazenamento de metadados diretamente associados ao teor de mensagens privadas, o que dificilmente poderá ser conciliado de forma segura e infalível com a preservação plena da privacidade e confidencialidade das comunicações privadas. Além disso,
a) A retenção de dados pretendida deverá ser feita de forma indiscriminada, para todos os usuários de determinado serviço ou aplicação, sem depender da existência de quaisquer indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal e mesmo que existam outros meios de prova disponíveis à autoridade pública. Além disso, prevê-se que o rastreamento seja utilizado não apenas na esfera penal, mas também na cível.
b) Em termos técnicos, pode-se dizer que a exigência, por lei, da criação e manutenção preventiva de enormes bases de dados contendo metadados associados a conteúdos gerados pelos usuários aumenta a complexidade operacional exigida dos provedores de aplicações no Brasil, o que favorece os grandes atores em detrimento dos pequenos, e pode contribuir para um aumento indesejado da insegurança cibernética com o incremento da possibilidade de intervenção e manipulação não autorizada, bem como de vazamentos acidentais ou não de dados pessoais aí armazenados.
c) A atual proposta do PL 2630 resulta em violação do princípio da presunção de inocência insculpido na Constituição Federal, contradiz o princípio da "minimização da preservação de dados pessoais", previstos no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (um reflexo do estágio atual das discussões globais a respeito da tutela dos dados pessoais no ambiente digital).
d) Ela pede que provedores de aplicação piorem a segurança dos usuários de forma desproporcional e desnecessária diante das garantias fundamentais da privacidade e da proteção de dados. Ademais, Com ela, inverte-se a lógica do devido processo legal na persecução penal, que não impede o monitoramento de comunicações privadas, mas o restringe para que seja feito, após autorização judicial, de forma prospectiva e para pessoas individualizadas identificadas como suspeitas de determinado ilícito, como garantia de necessidade e proporcionalidade da ação do aparato repressor do Estado.
5. Para além dos prejuízos ao exercício de direitos fundamentais no país, a rastreabilidade nos termos propostos impede que os usuários possam confiar nos serviços e aplicações disponíveis na Internet. O Brasil tem um histórico positivo na regulação da Internet, é líder nesse contexto com o Marco Civil da Internet e, ainda, tem um enorme potencial para ser líder mundial na economia digital global. Entretanto, o país perde muito se os usuários da Internet (inclusive as empresas que se valem dela para operar) não puderem contar com meios de comunicação seguros e confiáveis para o desempenho de suas atividades online. Além disso, se provedores de aplicação que operam (com e sem fins lucrativos) no Brasil forem obrigadas a oferecer serviços menos confiáveis, é possível que percam competitividade no mercado global, prejudicando direta e indiretamente a inserção do país na economia digital.
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O combate à desinformação é multidimensional e não pode resumir-se à variável tecnológica. Ele carece de debate apropriado e com a participação dos diversos setores afetados. Nesses termos, a produção colaborativa do Marco Civil da Internet com ampla e exaustiva participação popular, bem como o seu teor pautado em princípios, devem ser o caminho a seguir para assegurar que a intervenção legislativa e regulatória possa ser capaz de alavancar a Internet ainda mais como ferramenta capaz de contribuir para o desenvolvimento técnico, tecnológico, socioeconômico e humano no Brasil.
Se em tempos de normalidade qualquer avanço a respeito do tema impõe cautela, no contexto excepcional vivido hoje em função da COVID-19 a cautela deve ser ainda maior para evitar que medidas irrefletidas em relação à Internet possam amplificar a quantidade de prejuízos que podem decorrer da desconsideração dos itens apresentados anteriormente.